Por que escrevemos assim

Porque não acreditamos na Santíssima Trindade. Porque renegamos o Pai. O Filho. E o Espírito Santo. Porque somos criaturas da terra. E no plano rastejamos. Porque nos recusamos a fazer a prova da identidade. É igual? É semelhante? É parecido? Reconhecemos? Apostamos tudo no teste da diferença. Aumenta o mundo? É estranho? Causa espanto? É irreconhecível? Isso faz a nossa cabeça. Porque não temos negócio com a objetividade. Nem com a subjetividade. Nem botamos nossas fichas na descontinuidade entre objeto e sujeito. Ou entre a linguagem e o mundo. Porque cremos que escrever é só escrever. Sem assunto. Nem propósito. Sem ciência. E sem metafísica. Porque não reconhecemos a divisão de disciplinas. Nem de gêneros. Não queremos classificar. Nem, muito menos, ser classificados. Porque somos da pedagogia. Mas também não somos. Porque não somos da literatura. Mas também somos. Simplesmente porque queremos escrever o que nos dá na telha. O que nos vem à cabeça. E investir tudo na ideia que está à espreita. Porque não pertencemos a nenhuma seita. Nem nos filiamos a qualquer escola. E não tomamos nenhum partido. Porque não queremos ser bem comportados. Porque preferimos faltar ao respeito. E ser malcriados. Porque queremos fazer arte. Porque abominamos os padres, os pais da pátria e os guias dos povos. E os que querem salvar o mundo. E nos levar juntos. Porque queremos armar nossa tenda no deserto. E pregar pra ninguém. Uma doutrina sem credo, sem dogmas e sem fé. Porque não viajamos sem nossa catapulta. E sem nossa bolsinha de calhaus. E nos divertimos mirando na cabeça dos que se dão importância. E na espinha dos que se curvam. E na perna dos que se ajoelham. E porque não nos importam os que detêm o poder. Ou que traficam com o poder. Ou que se dobram ao poder. Porque rejeitamos uma vida de rebanho. De resignação. E de conformidade. Porque recusamos os juízos. E os tribunais. E as sentenças de morte. Porque não acreditamos em abstrações. Num mundo melhor. Numa educação melhor. No outro mundo. Porque, pra nós, escrever não é comunicar ideias. Nem passar informações. Muito menos pregar, prescrever ou ensinar. Pra isso existem os jornais, as igrejas e as escolas. Preferimos confundir. Desorientar. E tirar do lugar. Sair do sério. E correr por fora. Porque é o nosso desejo. Que não vem de dentro. Nem de fora. Mas das juntas. Das junções. E dos encaixes. Dos cruzamentos e dos encontrões. Porque preferimos o humor ao espírito de gravidade. A falta de decoro às boas maneiras. O sóbrio ao espalhafatoso. Porque fugimos das cerimônias. E das santimônias. Da pompa e circunstância. E porque torcemos o nariz para o oficial. O sagrado. E o santificado. Porque escrever é a nossa morada. E o pão nosso de cada dia. Amém.

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