O físico do dizer e o dizer do físico

Escrito em mobilização na “Praia”, de Coletivo Qualquer com Carolina Campos, no Polo Cultural Gaivotas, Lisboa

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O inteiro do corpo mora no desejo de dizer alguma coisa. No enquanto se diz alguma coisa e também nos instantes que brotam antes dela, quando dizer e movimento são um só acontecimento, a fisicalidade é feita de rastos de desejo. Da mesma maneira acontece no enquanto nos movemos e na gestação do nascer do gesto. Esta convivência se dá em algum ritmo. Ainda que não façamos uma frase, a garganta úmida pulsa ao sabor dos acordes da vida, os lábios definem compressões diversas, o peito vibra e alguma outra tensão se manifesta.

Seja nos caminhos do sistema nervoso pelos braços e pelas mãos, seja no menear da cabeça, essas antenas, seja nos afetos que toda significação convoca, dizer é físico e físico é dizer. No dizer e no antes do dizer está presente a mobilização de um fluxo de significação, uma mobilização movimentada.

Na “Praia”, temos a sintaxe, a prosódia e todos os elementos da frase com o som desligado. Escutamos, entretanto, as cadências do gesto que não se separariam de frases ou interjeições. A língua está presente em sua ausência. Numa espécie de rasura dançada, ouvimos a música ou a contramúsica da língua. É uma pragmática da linguagem sem nenhum pragmatismo, um convite feito às micropartículas da gestualidade, sua dispersão, suas fricções, suas manipulações.

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Manipuladores

Manipular é, justamente, usar a mão. Os discursos têm camadas físicas que, trazidas aqui à tona, revelam feixes de usos cotidianos e também midiáticos. Brechas do gesto estranham-se na cena, não se fixam na consideração funcional da esfera social. A mão pode mãozar e também manipular. Flerta com as significações, não valida. Os gestos não se detêm nos significados, mas sim na sobreposição eterna de camadas movimentadas, de rastos de significação desejante.

Os clichês aparecem como a própria materialidade do que, ao contrário, não se estabelece em definitivo. O mover-se pode então descolar-se completamente da forma, em fluxo bailarino. Há uma dança que se coloca como apara do social e não é esta. A “Praia” questiona a normalidade lá onde ela é gramática da pose cotidiana. Muitas praias são lugares de pose exacerbada, mas tantas outras há em que o corpo tem espaço para o selvagem. Que formas de estar banalizam o dizer, minando a existência? De que maneira lidar com conflitos, no lugar de abafá-los? O conflito é um elemento base numa conversa corriqueira sobre os interesses do comum. É claro que, no meio de tudo isso, pode-se sempre trazer uma arma. A violência também faz parte do jogo e é inclusive banalizada.

Na língua em que todos supostamente nos entendemos, supostamente democrática, a medida do outro, da outra, de outre dirige-se a mim. A resposta tem o tamanho do corpo, o desajeito e o ritmo do que vibramos no momento. Narra sem saber como termina. Acompanho sem ideia sobre onde vai parar – ou coloco à partida o que deve ser? Como filtrar o irrefreável fluxo de significações do mundo, do mar? Humanos gostam de garantias, mas a consideração do ritmo pede sempre outras formas de atenção, na atualização do que vou entendendo e do que vou dizendo. É infinito e não tem garantia de transmissão. É urgente.

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